Evanesces

   Estava na rua das Laranjeiras. Ao mesmo tempo que andava, olhava os meus sapatinhos de tênis novos. De repente parei, meus olhos piscaram levemente e olhei em volta. Não havia nenhuma laranjeira. Triste e previsível, pensei. E esqueci o pensamento.
Estava parado debaixo do semáforo, o caminho era em frente, e o tempo era um só. Mas não atravessava ainda porque alguns carros atrasados insistiam em continuar a passar. Passaram na ordem: dois carros cinzas, um vermelho, um cinza de novo, só que bem maior, seguido de um preto. Suponho que isso seja uma curiosidade.
Todos esses carros tinham janelas escuras, e se tivesse atravessado, não teria visto o rosto daquele que me tivesse esmagado, talvez matado, provavelmente freado a tempo. Não lembro se no momento pensei nisso. Acho que sim. Mas também pode ser que não.
Depois daqueles quatro carros, um mosquito de tamanho médio distraiu o vai e vem maquinal de minhas retinas aflitas entre um carro e o próximo. O mosquito de tamanho médio estava muito perto de minha cabeça. Se o ruido da cidade fosse silencioso, com certeza o zumbido daquele mosquito de tamanho médio me teria incomodado. Ele não me picou. Nem havia tentado. Ou se tentou, esqueci. Portanto creio que não.
Quando chegou a hora de atravessar, atravessei como os outros, que também atravessavam, já que tinha chegado a hora de atravessar. Voltando a andar, voltei a olhar os sapatinhos de tênis, com uma ternura fria que me comunicavam objetos novos e bonito ao qual ainda não me tinha acostumado.
Passei na frente de uma padaria/confeitaria. Estas duas palavras, contem a palavra ria no final: ria-ria me diziam. Não ri. Não lembro ter rido. Devo ter estimado que não teria sido normal rir sem razão, sozinho, no meio de outros.
Após ter entrado na padaria/confeitaria, onde na entrada havia dois degraus, me dei conta de que o segundo degrau tinha sido mais difícil de subir. Raciocinei que devia ser porque me tinha apoiado no pé esquerdo no momento de subir este segundo degrau, e que tendo menos força nesse pé era normal o que tinha acontecido. Depois raciocinei que devia ser porque na hora de subir o segundo degrau, minhas pernas já haviam cumulado o esforço do primeiro degrau. Era normal o que tinha acontecido. De qualquer jeito era normal. Parei de pensar por um segundo. Um cheiro de doce me acordou. Senti satisfação.
Escolhi um pão doce recheado de creme, que por cima tinha uma crosta de açúcar e pedacinhos de frutas caramelizadas. Já tinha provado esse pão doce e gostava. Fiz a fila, salivando, e quando cheguei no caixa, disse a seguinte frase: “oi”. Marquei uma pausa e retomei: ” posso ter aquele pão doce de 2,99 “. Nada aconteceu. Então repeti : ” posso ter aquele pão doce de 2,99 “, após ter dito um pouco mais alto as palavras “oi” e “moça”. Nada aconteceu. Olhei para ela. Ela não me olhava. Talvez não me via. Constatei que ela era uma mulher. Já o sabia antes, mas naquele momento fiz esta constatação. Antes por exemplo, não havia constatado que o pão doce era um pão doce.
Suponho que isso seja uma curiosidade.
Ela estava atendendo outra pessoa. A pessoa que ela estava atendendo era outra. Por acaso este outro parecia ter o mesmo tamanho que eu, mas da mesma forma que esta impressão possa ter sido verdadeira, talvez tenha sido falsa. Este outro também tinha sapatinhos de tênis. Mas os deles eram usados. Se me lembro bem.
Repeti o pedido uma terceira vez, bem alto. Nada aconteceu. Esperei um instante e gritei “moça!” Nada aconteceu. Ela não disse nada, ninguém disse nada, ninguém me olhou, nada aconteceu. Todos tinham sapatinhos de tênis. Todos estavam olhando os sapatinhos de tênis.
Acho que naquele momento, naquele exato momento, senti algo. Não lembro mais o que. Algo que se sente. Por exemplo um sentimento ou uma sensação. Mas talvez não tenha sentido nada mesmo. Muitas vezes nos lembramos mal. Mas nem sempre. Porém não sei dizer se desta vez estou lembrando certo ou errado. Acho que estou errado, mas também existe a possibilidade de que esteja certo.
Sai da padaria/confeitaria. Subi no ônibus 502, o segundo que passou.

   Eram aproximadamente 80 os segundos durante os quais esperei o ônibus. Suponho que isso seja uma curiosidade

    Entrei no ônibus.

   Havia naquele momento dois lugares onde queria ir, o primeiro era o lugar onde queria ir antes de entrar no ônibus, ou seja o numero 18 da rua Tamanduá (onde nunca vi nenhum tamanduá) e o segundo lugar era o lugar onde comecei a querer ir depois de entrar no ônibus, ou seja o assento perto da janela da terceira fileira da esquerda.
Tirei do bolso uma nota de 20 reais muito usada. Dei ao cobrador, que era branco e ruivo, o que não é realista, mas foi a realidade naquele instante. Nada aconteceu. Disse: “com licença moço”. Nada aconteceu. Passei por cima da roleta. Nada aconteceu. Empurrei uma velinha que estava no corredor. Nada aconteceu. Gritei. Nada aconteceu. Chorei. Nada aconteceu. Rasguei minha nota de vinte reais. Nada aconteceu. Percebi que estava descalço. E foi então neste estranho instante de solidão e indiferença que me dei conta que já não existia mais.

Por Helena Magnan Coelho 

Deja un comentario

Blog at WordPress.com.

A %d blogueros les gusta esto: